sábado, 11 de outubro de 2008

Devaneios, vinhos e Chaplin

As pessoas que me conhecem e que convivem comigo já estão acostumadas com a minha cabecinha cheia de imaginação fértil. As que não me conhecem podem se supreender quando descobrem que esta pessoa que vos escreve, que parece ser tão calma e sossegada por fora, contém um alto teor de absurdidades oscilantes por dentro. E o momento preferido do dia para deixar a fantasia correr solta é durante meu exercício aeróbico diário. Enquanto condeno, inconscientemente, à morte as calorias através dos movimentos rítmicos e contínuos dos grupos musculares das minhas pernas e coxas, conscientemente gosto de inventar histórias e, eventualmente, divagar entre estranhos raciocínios e idéias. Raciocínios e idéias inúteis, porém deliciosamente divertidos. Uma das minhas últimas maluquices foi tentar comparar um enólogo com um cinéfilo, e gostaria de expor aqui.
Um vinho é feito de uvas, que crescem em uma vinícola, e é produzido por um vinicultor. Um filme é feito de atores, que desenvolvem-se com um roteiro, e é conduzido por um diretor. Um bom vinicultor pode extrair um sabor divino mesmo tendo em mãos uma safra não muito boa. O mesmo pode acontecer a um diretor com relação a seu elenco. E na hora de ir na loja, diante das prateleiras repletas de garrafas, não se pode simplesmente deixar que as tabelas de uvas ou safras da moda, ou até um rótulo atraente, façam sua escolha. Experimentar é preciso. Saber cheirar e degustar. E não importa o que digam: se você gostou, então é bom. O raciocínio ao ir a uma locadora também deve ser semelhante: não deixar que as críticas formem opiniões. Saborear um filme e decidir sua qualidade por conta própria valem mais que uma coluna de jornal.
E quanto mais velho, melhor. Mito. Alguns vinhos já alcançam sua maturidade com apenas 3 anos de idade. Às vezes, um filme também não dura mais do que isso: um ano no cinema, outro na locadora e mais um na TV e já estão velhos no sentido de desinteressantes. Muitas das risadas que nossos pais deram em suas juventudes no cinema podem não se repetir hoje por conta do filme já estar um tanto quanto ultrapassado. Ao contrário, alguns vinhos superiores podem ser muito jovens com 8 anos e demorar ainda mais tempo para que a acidez, o álcool, o tanino e o açúcar promovam seu envelhecimento. E quando penso em vinhos que ficam melhores com o tempo, penso em filmes que ficam melhores com o tempo, e, de imediato, me vem um nome a mente: Sir Charles Chaplin. Fico impressionada ao ver que sua obra não sofreu grandes conseqüências com o passar do tempo, nem apresenta rugas. Pelo contrário. Mudos e sem cor, ainda são modernos. E se me pedirem para comparar um de seus filmes com uma safra excepcional de Bourgogne, não hesitarei em dizer "O Grande Ditador". Em seu primeiro filme falado, sem ter noção da tragédia que foi o holocausto, em 1940, Chaplin lançava a mistura na medida certa da acidez e do açúcar, interpretanto o ditador Hynkel e adoçando com o barbeiro judeu ao mesmo tempo.
E a cada ano que passa, fica melhor e mais engraçado. Sempre que vejo a cena do austero ditador brincando com a delicadeza de uma criança com o mundo (que até hoje tenta-se inultimente imitar), parece que me emociono ainda mais do que da última vez. E mesmo estando anos a frente da II GM, a aclamação da paz feita há 68 anos por Charlie através do discurso do barbeiro está mais viva e autêntica do que nunca; muda-se o contexto do mundo, mas não muda de significado. E até que essa aclamação seja atentida, esse filme continuará jovem por muito tempo, arrisco dizer, infelizmente. Até lá, tomo sempre uma taça dessa garrafa sem medo de perder seu sabor magnífico.
Chaplin era a uva e o vinicultor. Ambos de excelente qualidade. Sempre que me sirvo de seus filmes, confesso, perco a elegância e me embriago. E por via das dúvidas, sempre volto de táxi para casa.